quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Crónica de História da Nossa Terra

Povoados pré-históricos e abrigos naturais existentes na Serra

No Verão passado visitei Vila Viçosa. Interessante terra esta, que possui um dos mais impressionantes pelourinhos do estilo gaiola de que o nosso país é depositário e onde se podem visitar os antigos paços onde esteve o rei imediatamente antes do regicídio que seria a aurora da queda da monarquia e da implantação da república. Este acontecimento, no qual se presume que Aquilino Ribeiro tenha tomado parte capital, perfaz 100 anos a 5 de Outubro do próximo ano.
Foi em Vila Viçosa que adquiri um trabalho publicado em 1894, da autoria do padre Joaquim José da Rosa Espanca, intitulado “Estudo sobre as antas e seus congéneres”. Esse opúsculo do ilustre “cronista” é excelente para mostrar as ideias profundamente erróneas que nos finados de oitocentos se tinha a propósito da pré-história. Para Espanca e tantos outros da época, as antas eram “choças ou abrigos de pastores dos tempos históricos.” Apesar de bem informado bibliograficamente, incluindo referências aos célebres frei Martinho de S. Paulo e Manuel Severim de Faria, Espanca reproduz o conhecimento da época e adensa-lhe uma dose de interpretação pessoal, sobretudo etimológica. Graças ao desenvolvimento da Arqueologia, sabemos hoje que as teorias antigas relativamente à funcionalidade e cronologia dos vestígios pré-históricos eram totalmente falsas. Os trabalhos de Boucher e Perthes na arqueologia e de Darwin na biologia, inauguraram os grandes avanços que vieram a ocorrer na compreensão da grande antiguidade da humanidade e sua evolução física e cultural.
No distrito há vestígios em grande quantidade do neolítico final. Durante o III milénio a.C. período designado de Calcolítico, que corresponde ao início da Idade dos Metais, ocorreram importantes transformações em vários domínios da sociedade que se manifestaram não só na arquitectura funerária como a construção de novos sepulcros e com a reutilização de outros já existentes, mas sobretudo com uma nova estruturação do povoamento que alterou a relação dos vários grupos populacionais entre si, com a paisagem e seus recursos. Abandonou-se a construção de túmulos de grandes dimensões, como se fez no Neolítico final. Os novos monumentos funerários eram mais discretos na paisagem, apresentando estruturas cistoídes sob mamoa. A reutilização dos dólmens de grandes dimensões ocorreu porque se tratavam de lugares cuja memória colectiva lhes conferia ainda um carácter sagrado, como terá sucedido com a Orca das Seixas na Serra de Leomil, a Orca de Pendilhe e tantas outras. Nelas recolheram-se cerâmicas campaniformes. Neste período há novos espaços sacralizados, sendo lugares destacados na paisagem, nomeadamente grandes aglomerados de penedos.
O povoamento do III milénio apresenta uma maior diversidade do que anteriormente. Já foram identificados e estudados povoados abertos como Laceiras (Carregal do Sal), Corujeira (Nelas), abrigos sob rocha como o povoado pré-histórico do Castelo em Ariz, visível na figura que apresento. A implantação dos povoados em altura e o investimento na construção de estruturas de defesa, traduzem uma crescente preocupação com o habitat, que cada vez mais tem um cariz sedentário e já não sazonal como os habitats construídos de frágeis cabanas neolíticas. Esta escolha topográfica revela também uma procura de afirmação de domínio sobre o território circundante, provavelmente exercendo o mesmo papel que anteriormente fora desempenhado por dólmenes e menires. A importância do território para o pastoreio e a produção agrícola aumentou a necessidade do seu controlo e vigilância. As fronteiras entre os grupos neolíticos nesta atura estavam já melhor demarcadas, nomeadamente com a colocação de estátuas menires como as da Nave e Alvite. No domínio da tecnologia a grande inovação consistiu na introdução do peso do tear na tecelagem, havendo alguns destes espécimes no distrito. Cerâmicas foram também encontradas no distrito. O material lítico manteve-se quase inalterável.
A arqueologia percorreu um longo e lento caminho numa atitude compreensível e humana de dúvida, sem a qual a ciência não avança. Há muito ainda a investigar para que consigamos uma aproximação mais cabal às sociedades do passado. A nossa serra revelar-nos-á, não tenho hesitação, muitas mais surpresas. Enquanto tal não acontece cabe a todos a responsabilidade de transmitir às gerações futuras estes testemunhos que ficaram como prova da luta do homem pela sobrevivência, símbolos da tecnologia que o progresso tornou incipiente.
Publicado no Jornal Terras do Demo
edição de 4/12/2009

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