terça-feira, 10 de agosto de 2010

Convento de S. Francisco

Seria o convento dos capuchinhos de Caria um terreno memorial virginalmente desataviado se Aquilino lhe não tivesse loxodromiamente fincado a pena. Se infernos há para os monumentos, o convento de S. Francisco está a despedir-se do purgatório com vaticínios de abismo. Na Geografia Sentimental já Aquilino, imagine-se, o referia.

Se Aquilino reproduz, no prelo, convicções, narra também vivências com realismo. Delas avulta, com naturalidade, o convento de S. Francisco de Caria, um dos ex-libris das Terras do Demo. Muito embora impere a dimensão romancesca e ficcionária da história que as suas reminiscências e criatividade parturiram, tranches há da obra aquiliniana de puro desafio ao Khronos: com narração histórica, com pretensões de objectividade, com fitos de realismo.

Saindo de Moimenta com determinação monacal, rumo às terras de Caria, volvem-se cerca de quatro quilómetros até que se impõe retirar a tala asinina da destra para subir a rodovia que bordeja o espaço onde antigamente o íncola realizava a feira em honra, ou honrada, pelo patrono do convento que tiros de calhandrina ajuizam de cercanejo: S. Francisco. Metendo por uma vereda que dá à estrada que conduz a Caria, segue um trilho que a fauna avícola, pondo termo à calma absorta, rasga em tons melódicos proceros de chamamento prestadio, parecendo entender o carácter prestameiro da cultura que ali o nosso espírito representa, conduzindo-nos ao núcleo do eremitério franciscano.

Atravessada a quinta por esta via, reclina-se suavemente pela encosta, numa compilação florística, hoje muito diferente do que já foi. Arvoredos verdejantes e floridos com matagais, em doces emanações de fescura que as águas brotam e deslizam a seus pés, e leiras fecundas onde outrora cresciam mimos pujantes e hortas viçosas. Bonita e bem lavada de ares constantes, esta é uma quinta de quietude patriarcal, de viver provinciano. O pronunciado declive tem um pico, onde se ergue altaneiro e senhoril um miradouro, que olha das alturas a líquida fita coleante que se alonga por entre alcantis agrestes e prados verdejantes. Daí lobrigam-se sem fusco, serranias churras, pinheirais, cristas pedregosas e ainda vários povoados.

Olhando em redor aprisionam-se os sentidos e por ali ficamos, estáticos, como sôfregos na retrinca. Cada recanto de feição rural revela a ancianidade do local. Olhar para estas aguarelas com olhos de ver, é viajar por várias dimensões e rememorar as idades esquecidas, os legados que ainda não findaram. Uma destas, entre muitas relíquias históricas, passíveis de contemplação, é o convento franciscano que terá sido o primeiro da Congregação da Ordem Terceira Regular em Portugal, erigido a sudeste do actual concelho de Moimenta da Beira, num espaço que, pelo menos ao longo da época moderna, passou a ser designado de Quinta do Ribeiro, em alusão mais que provável ao pequeno curso de água que por ali ponteia. Na sua essência, ela resulta da anexação da Quinta do Paço (Paço dos Bulários), dos senhores de Távora, doada aos frades da Ordem Terceira de São Francisco pelo rico e nobre Pedro Gil para a erecção de um convento o qual aí se fundou em 1443. Ao que consta o Sumo Pontífice, Eugénio IV entregou pastoral ao bispo em forma de bula Noveretis nos super, dando posse da igreja aos religiosos que nela celebraram a primeira missa em 28 de Agosto de 1445, dia de Santo Agostinho.

Este eremitério cedo se constituiu como um centro fecundo de renovação cristã, frequentado por uma turbe de fiéis em busca de sacramentos. Além do convento, com duas estruturas físicas – igreja e casa residencial dos frades - divisam-se neste amplo e fértil espaço um solar com vários anexos transformados em Escola Profissional Tecnológica e Agrária, além de um tanque, uma fonte, um pombal e a capela de Nossa Senhora da Conceição.

Louçainho de ricos pormenores de antanho que o mugre fétido parasitamente procura elidir, possidente, o convento encontra-se, hoje, em sepultura de vala aberta. O esqueleto que dele resta está apossado da sôfrega natureza, rubuste milhafre que o abocanha e suga. Sem suficiência, porém, para esconder ricos pormenores de antanho que a incúria do tempo e dos homens não conseguiu letificamente fazer ruir. Da igreja avulta, de nariz arrebitado, altaneira e senhoril, uma torre sineira de três secções verticais que se elevam da base através de colunas de pedraria uniformemente talhada, que suportam o peso de todo o conjunto. Com janelas circunferenciais e quadrangulares de pequena bordadura granítica exterior, destinadas à luminescência, sobressai o derradeiro elemento seccional, cimeiro, ligeiramente mais estreito, como aquele que mais ornatos permite esquadrinhar. Os quatro cunhais de pilastras quadrangulares, onde convergem as paredes deste elemento seccional quadrifacetado, terminam em jeito de capitel onde assentam quatro lintéis que servem de base ao telhado de cujos vértices saem quatro gárgulas em forma de corneta. Cada uma das faces desta torre possui quatro aberturas em janela pronunciada de onde se vislumbravam e irradiava a equissonância de sineiras composições.

O resto da igreja apresenta-se sob duas faces. A do meio, contígua à torre, assume a centralidade do edifício. A reentrância do portal de ampla quadratura inicia-se com arco de três arestas ladeado de cunhais encimados de remate. Segue-se uma portentosa janela rectangular com bordadura exterior, como todas as outras do edifício, por onde se fazia a iluminação do interior. Ombreia com duas outras, igualmente de traçado rectangular mas com menor área, que estreitecem para dentro, isto é, com traçado oblíquo na espessura da parede em jeito de lancis de quebra-luz. Termina o conjunto em telhado triangular de face ornada com arco semi circunferencial a guardar nicho granítico de traçado esbéltico, assente em base saliente e suportado por pequenas colunas de base fuste e capitel, destinado, por certo, ao patrono. A outra face, no cerne de dois poderosos cunhais, autênticas longarinas, comporta um portal robusto, de menor área do que o anterior, em conjunto quadrangular encimado de janela circunferencial elevada a cerca de 6 metros.

Em virtude do desaparecimento quase total da sua documentação, sabe-se deste cenóbio praticamente apenas que foi extinto no século XIX por ocasião da extinção das ordens religiosas. Em 1919 Amândio Campos adquire-o a Margarida Nápoles Alpoim mas posteriormente inicia-se a sua degradação e pilhagem das suas pertenças.

O convento franciscano, que possuía um recheio cultual notável, era um foco de onde irradiava religiosidade, aí se realizando várias celebrações litúrgicas bastante concorridas. Era, também, o lugar preferido para último repouso das famílias principais, a que nem sempre reagiu com agrado o reitor da paróquia ruense. Pouco se sabe acerca dos quantitativos da comunidade franciscana de Caria. Neste particular, sabe-se apenas que em 1587 o abade de Alcobaça, frei Guilherme da Paixão, visitou a Terceira Ordem de S. Francisco, encontrando no convento de Caria 17 frades.

É de referências como estas que convém sair ao encalce, palminhando um longo trilho, uma via sinuosa, com madeiro de inspiração crística engalispado nas costas, rumo ao conhecimento cabal da história de um erimitério que ocupou uma posição central na narrativa de mestre Aquilino e enfileira hoje entre os monumentos de incontornável valia no panorama artístico-monumental moimentense.

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