Nas Terras do Demo descobrimos a geografia sentimental de Aquilino Ribeiro. É a casa modesta de um escritor culto, preso durante o republicanismo, exilado em Paris e Berlim, mas cuja literatura viveu sempre nesta aldeia beirã
Diz-se que Aquilino Ribeiro é um escritor difícil. Há quem tenha começado um livro seu, resistido e desistido. Já não está nos programas de Português desde os anos 80 apesar de ter sido um dos escritores mais populares do seu tempo. Lê-lo, hoje, só acompanhado de dicionário para as "palavras difíceis", tal a quantidade de regionalismos, léxico popular, linguajar e ladainhas da Beira, paisagem humana da sua literatura.
Não é barroco ou extravagante. Pelo contrário: etnólogo, naturalista, cronista, capta o potencial fenomenológico da língua. A riqueza do léxico está na novidade com que retrata o mundo rural que, disse o ensaísta Eduardo Lourenço, "não estaria apenas no olhar quase etnográfico que será o seu acerca da realidade beirã em que ele mesmo enraíza, mas na textura verbal igualmente mimética, tradutora, com a mais crua fidelidade, do falar serrano". Aquilino dizia: "A madre é na aldeia; ali está o puro idioma."
É na aldeia que está a sua Casa-Museu, Fundação Aquilino Ribeiro criada em 1988 pelo filho mais velho do escritor, Aníbal. Lugar de Soutosa, Moimenta da Beira, Viseu. Segundo Aquilino, no coração das Terras do Demo (romance de 1919). São "do demo" porque por aqui "nem Cristo" "nem el-Rei" passaram. É terra brava, agreste, esquecida de Deus, "penedia, aldeias tristes e obtusas, pinhais, uma impressão de tormento telúrico" (Geografia Sentimental, 1951). Onde os homens e os bichos são como irmãos, onde faunos, demos e gentes das fábulas se cruzam com o beirão, "camponeses, almocreves e outros tipos esmagados na base da pirâmide social, contra todas as opressões que lhes tolhem os impulsos vitais" - figuras da sua obra (segundo Óscar Lopes e António José Saraiva).
"O homem das serras traz chumbado ao tornozelo todos os grilhões da servidão forjados nos tempos bárbaros. Passam os reinados, as vagas políticas de democracia e de emancipação social, e ele queda escravo, miserável, para seu bem, não tendo conceito algum da igualdade humana", escreveu Aquilino.
O cheiro das tílias
Chega-se por estradas impiedosas, curva e contracurva, recta com limite de velocidade, subindo e descendo a serra e contornando o penedo, "lanços perigosos e ziguezagues mortais" (Aquilino), agora rasgadas pelas rotundas do desenvolvimento. Percebe-se por que escreve que, apesar da distância, da imensidão da paisagem, da presença da Estrela nevada, aqui era o centro de tudo: "Estas viagens eram até certo ponto o ersatz do caminho marítimo para a Índia. Largava-se de Viseu com a tardinha e era emocional como despedir-se um homem para o cabo do mundo."
A casa está como quando o escritor a habitou. Humilde, modesta, de pedra, ainda a mesma estrutura de madeira escura, do seu tempo. Aquilino nasceu em Sernancelhe em 1885, filho de padre. A mãe, camponesa, trouxe-o para esta casa em Soutosa aos dez anos. Aqui cresceu até estudar em Lamego, depois em Viseu, e depois em Beja, no seminário, de onde foi expulso "por falta de vocação". Em 1906 vai para Lisboa. Mas, na verdade, desta aldeia nunca mais saiu.
Não era ainda o romancista que, no furor do republicanismo, começa a escrever em jornais e que em 1907 é preso após a explosão de uma bomba no seu quarto. Consegue fugir da prisão e refugia-se em Paris em 1908, meses depois do regicídio de D. Carlos, em que se suspeita que Aquilino Ribeiro estivesse envolvido (não directamente, mas conhecia o plano dos assassinos). Estudou na Sorbonne, onde conheceu Grete Tiedemann, alemã, com quem casaria em 1913. Mas o começo da I Guerra Mundial obrigou o escritor, a mulher e o filho recém-nascido, Aníbal, a regressar a Portugal. As primeiras publicações, Jardim das Tormentas (prefácio de Carlos Malheiro Dias) sai em 1914 e Via Sinuosa em 1918. Seguem-se Terras do Demo (1919) e Malhadinhas (1922). Em 1924 publica o clássico infantil O Romance da Raposa, hoje talvez o único texto seu lido em algumas escolas do concelho de Moimenta da Beira.
Em 1921, enquanto director da Biblioteca Nacional, participou no lançamento da revista Seara Nova, dirigida por Raul Proença, onde colaboraram Jaime Cortesão, António Sérgio, Raul Brandão ou Augusto Casimiro. A revista de crítica e intervenção pretendia "contribuir para formar, acima das pátrias, a união de todas as pátrias - uma consciência internacional bastante forte para não permitir novas lutas fratricidas". A revista resistiu durante o Estado Novo, enfrentou a censura e, apesar da irregularidade das publicações, foi sempre símbolo de oposição ao regime.
A Soutosa, Aquilino Ribeiro regressava todos os Verões e aí escrevia em comunhão com a natureza. "Quando me instalo na aldeia - e nunca será para menos do que os três meses de Verão - hei-de levantar-me infalivelmente com a alba", disse. A propriedade, de cerca de três hectares, está como a deixou (apesar de agora não ser cultivada): as figueiras "com grandes folhas esparramadas em jeito de esperar outra vez Adão e Eva", a uva moscatel que "tão biblicamente cobre o poço a dois passos da cozinha". Ao centro, as grandes árvores de tília que "recobrem de sombras e perfume" a entrada da casa foram plantadas pelo escritor. "Ano por ano as fui acalentando e tutelando. Por isso, quando arribo de Lisboa, recebem-me luxuriantes, sonoras das abelhas que lhe chupam o pólen." O escritor chegava em Junho quando migravam os cucos que lhe recordavam que "estão a findar os meus ócios e também eu tenho de me separar das aves que são sedentárias, das minhas árvores".
Regressar a Soutosa era voltar ao espaço bucólico de pertença. Conclui o escritor em Geografia Sentimental, revelando a sua proximidade com a natureza: "A visita matinal que faço a estas queridas e prosaicas coisas, com as rolas a ensaiar, após a traviata sobre o pinhal, suas sarabandas de amor, trocando o bom-dia com os jornaleiros, vale uma volta pelo Chiado ao cair da tarde."
Grete morre em Soutosa em 1927. Procurado por participar numa revolta contra a Ditadura Militar, Aquilino refugiara-se na Beira. Envolve-se na sublevação do Regimento de Pinhel contra o novo Governo, mas é preso. Conseguindo novamente fugir, exila-se em Paris em 1928. Casa uma segunda vez, com Jerónima Dantas Machado, filha do ex-Presidente Bernardino Machado (terceiro e oitavo Presidente da primeira República), que também vivia no exílio (e de quem teve um segundo filho).
Na Fundação Aquilino Ribeiro, há pouca informação sobre esta fase da vida de Aquilino, a mesma em que, anos depois, escreverá as suas obras mais populares, A Casa Grande de Romarigães (1957) e Quando os Lobos Uivam (1958), apreendido pela censura e mais tarde amnistiado, num processo que durou mais de dois anos. A casa de Romarigães, solar dos "Menezes e Montenegros", pertencia à família de Jerónima Machado, em Paredes de Coura, Minho. No prefácio, Aquilino explica como resolveu contar a história de Portugal através desta grande casa, parte em ruínas, quando nela encontrou manuscritos e correspondência de 1680 a 1828 entre antigos habitantes da casa. Decidiu continuar a contar a história. Por isso, "as últimas e extravagantes páginas do livro são da minha lavra. Às outras, sacudi o bolor do tempo e reatei o fio de Ariadna".
Na casa de Aquilino há muitas fotografias da primeira mulher, Grete, mãe de Aníbal (mas não da segunda). Ali estão os seus óculos, os seus livros, muita arte, como o retrato que Abel Manta lhe pintou, agora no seu quarto reconstituído - modesto, uma cama de ferro branco e uma cómoda com fotografias. Há pinturas de Amadeo Souza-Cardoso, escultura de Anjos Teixeira, caricaturas de Santana e de Stuart Carvalhais. Há correspondência de Óscar Lopes, Teixeira de Pascoaes e ainda um postal de Beatriz Costa com o seguinte destinatário: Aquilino Ribeiro. Morada: Brasileira do Chiado.
No escritório está uma pequena parte da sua biblioteca - a restante, cerca de 8 mil volumes, está numa sala anexa à Casa do Caseiro, reconstruída na propriedade, que apresenta um museu etnográfico sobre "o aldeão da Beira". O espólio pessoal do escritor, que morreu em 1963, está em depósito na Biblioteca Nacional. A secretária veio de Santo Amaro de Oeiras, onde vivia. À época, custou 1100 escudos.
Aqui escrevia a sua "aldeia mítica onde são tão presentes os homens e a vida ancestral do nosso povo como os seres de fábula ou memória, faunos ou santos da sua particular legenda", como escreveu Eduardo Lourenço numa edição especial da Colóquio-Letras (1985) dedicada ao escritor. O seu mundo não é o do "refinado Eça", por quem "fez sempre gala em se definir por oposição", explica Lourenço. A sua êxtase perante o mundo rural não é a de Fradique ou de Jacinto, continua: ele era o "artista rude, filho da minha serra" que retrata nessa "aldeia-memória" o mundo "primitivo" e "bárbaro", "à margem da civilização".
Continua a não ser lido. Continua a dizer-se que é difícil. E de resistência em resistência, também a sua casa, isolada em Soutosa, Moimenta da Beira, parece esquecida. Daí que a Fundação esteja a trabalhar para se abrir aos visitantes: uma nova loja na casa vende vinho da região da cooperativa de Távora-Varosa, espumante "Terras do Demo" que adoptou textos de Aquilino no rótulo, e outros vinhos. Aí se vendem também algumas edições dos livros que a Bertrand tem vindo a reeditar, e o recente Guia das Aves, antologia de excertos aquilinianos nos quais se descrevem mais de 60 aves selvagens (edição da Boca).
Aquilino tinha "extraordinárias faculdades inatas para tirar partido da expressividade sensorial do idioma"; a sua linguagem é tão rica, de "graça idiomática" que na literatura portuguesa "é a mais exuberante de Camilo para cá" (dizem Lopes e Saraiva). É aliás sobre Camilo Castelo Branco a biografia romanceada Romance de Camilo (1956), história do "filho do Senhor Manuel Botelho e da sua criada Jacinta Rosa". Mas não se pense que, apesar de existir um Glossário Sucinto para Melhor Compreensão de Aquilino Ribeiro (de Elviro Rocha Gomes, 1930), a obra de Aquilino se possa resumir à de um escritor regionalista.
Para Óscar Lopes, Aquilino deverá ser lido ao lado os seus contemporâneos: Raul Brandão, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa. A sua literatura é de "rompimento com a sensibilidade literária anterior". Cada um à sua maneira, "dão-se conta de que já não acreditam naquilo em que em 1913 julgavam acreditar monárquicos ou republicanos, católicos ou positivistas". Mas apesar de ser contemporâneo da Geração de Orpheu, com quem conviveu (Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro) em Paris, nas vésperas da I Guerra Mundial, Aquilino Ribeiro acabou por ser, segundo Óscar Lopes, ofuscado por Pessoa e esquecido pela "consagração do Modernismo" da crítica.
Fonte: Público.pt
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