A água potável é um bem finito, mas o seu uso irresponsável
começa nas entidades de abastecimento da rede, que pecam por pouca
reabilitação. As Associações ambientalistas defendem mais eficiência e
prevenção
A boa gestão dos recursos naturais é cada vez mais
imperativa. No caso da água, é ainda mais evidente. “A quantidade de água
potável que existe em todo o planeta são 2%. Dessa percentagem, apenas 1% está
verdadeiramente disponível, porque o restante está congelado. Temos uma
quantidade muito reduzida de água potável para consumo humano”, explica ao i a
ambientalista Carmen Lima, da Quercus – Associação Nacional de Conservação da
Natureza.
Por cá, ainda não sofremos na pele a falta de água, mas até
chegar às nossas torneiras há um longo caminho.
O percurso inicia-se com uma primeira fase, designada
sistema em alta, que inclui a captação – subterrânea ou superficial – da água,
à qual se segue, depois, o tratamento, que garante a qualidade para consumo
humano. Segue-se a elevação (introdução de energia no escoamento de água quando
não é possível escoá-la apenas através da gravidade) e o transporte, que garantem que a água chega aos
reservatórios.
Numa segunda fase – o sistema em baixa –, inicia-se a distribuição
a partir do reservatório e através de um sistema de condutas, para, na etapa
final do percurso, chegar ao consumidor.
Pelo caminho, ao longo da rede de abastecimento, onde não
faltam canalizações a precisar de serem intervencionadas, há muitos litros que
se perdem e que não são aproveitados para nenhuma atividade.
“É uma rede que já tem alguns anos e que está a ser intervencionada em alguns
pontos, mas não em número suficiente. Sabendo que o ano passado foi de seca
extrema e que as perspetivas quanto às alterações climáticas não são animadoras
– na África do Sul estão mesmo a ser adotadas medidas de racionalização da
utilização de água –, todas as perdas que possam existir são de lamentar”,
assinala Carmen Lima.
Mas o impacto destas perdas tem outros contornos, como nota
ao i a especialista em recursos hídricos da Zero - Associação Sistema Terrestre
Sustentável, Carla Graça: “A água perdida já foi tratada e tem já a máxima
qualidade possível. E isso representa custos até para os próprios serviços,
porque a água não é cobrada. E de um ponto de vista ambiental, a par do
desperdício do recurso propriamente dito, há também outros custos, porque o
tratamento envolve o uso de reagentes e produtos químicos e energia”.
Mas quais as reais perdas de água ao longo da rede? A partir
dos dados disponíveis no último “Relatório Anual dos Serviços de Águas e
Resíduos em Portugal”, relativo ao ano de 2016, da Entidade Reguladora dos
Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) – que tem como função, entre outras, a regulação
dos serviços de abastecimento público de água –, o i concluiu que a média das
“perdas reais de água”, como são denominadas, se fixa, por dia e por ramal
(tubagens que saem da tubagem principal), nos 126 litros – o que equivale à
quantidade que se gasta num duche prolongado. O valor contempla apenas 207 do
total das 256 entidades responsáveis pelo abastecimento de água em sistemas em
baixa abrangidas pela análise da ERSAR – foram essas que, por um lado,
apresentaram dados – 31 não o fizeram –, e apresentaram-nos em litros – 18
apresentaram-nos em metros cúbicos.
Estas “perdas reais de água”, em relação às quais a ERSAR
considera que há “oportunidades de melhoria, sendo importante que as entidades
gestoras implementem metodologias de redução das perdas de água”, refletem-se
financeiramente noutro indicador também presente no relatório – a “água não
faturada”. Segundo Carla Graça, “a água não faturada reflete, além das perdas
ao longo da rede de abastecimento por roturas ou má manutenção, a água que é oferecida
a determinadas associações ou aos bombeiros, por exemplo, por acordo com as
autarquias”. Reflete, também, a utilização ilegal. Ora, segundo a ERSAR, a água
não faturada é “insatisfatória” a partir de uma percentagem de 30% – e em 2016,
162 entidades somaram uma percentagem de água não faturada superior a essa
valor.
Questionadas pela ERSAR sobre este indicador, 233 entidades
deram resposta e segundo a entidade registou-se, em média, no ano de 2016, uma
percentagem de 29.8% de água não faturada. Também aqui o veredicto da ERSAR dá
conta de que é necessário fazer melhorias “sendo importante que as entidades
gestoras reforcem o aproveitamento da água entrada no sistema”, assinalando que
“algumas entidades gestoras apresentam uma percentagem elevada de água não
faturada”.
As melhores e as piores É certo que tanto a média de perdas
reais de água, como a de água não faturada, são valores elevados; mas há
entidades que revelam um desempenho quase exemplar nos dois indicadores.
Ao nível das perdas de água, destacam-se pela positiva a
Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, que desaproveita apenas sete litros por
dia por ramal, a autarquia de Vendas Novas, que se fica pelos oito litros, a
Indaqua Santo Tirso/Trofa, que desperdiça 11 litros, a SM de Abrantes, que
perde 15, a Câmara Municipal de Arraiolos, que soma perdas de 16 litros por
dia, a SMSB de Viana do Castelo, que chega aos 19 litros, as autarquias de
Monchique e de Loulé que desperdiçam 23 e 24 litros, respetivamente, a Águas de
Paços de Ferreira, que regista 27 litros de água perdidos por dia por ramal, e,
por fim, as Águas de Barcelos, que atingem um desperdício de 30 litros. Já no
indicador da água não faturada, as dez
entidades melhor posicionadas são a Infraquinta (concelho de Loulé,
Quinta do Lago, 4,6 %), a Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (4,6%), a
Indaqua Santo Tirso/Trofa (8,6 %), a Águas de Cascais (10,3 %), a EPAL
(concelho de Lisboa, 10,5 %), a SMSB de Viana do Castelo (12,4 %), a Luságua
Alcanena (13,5 %), a AGERE (concelho de Braga, 13,7 %), a Inframoura (concelho de Loulé, Vilamoura,
14 %) e as Águas de Paços de Ferreira (15 %).
Entre os bons exemplos, a ambientalista da Zero destaca o
caso da EPAL. “A EPAL conseguiu implementar um sistema muito bom e julgo que
neste momento também já faz formação a outras entidades. Tinham perdas na ordem
dos 20 e tal por cento e conseguiram reduzir para metade, na cidade de Lisboa”,
assinala Carla Graça, que nota que a capital coloca dificuldades em termos de
relevo ao sistema de abastecimento, apesar de reconhecer que a EPAL ter mais
margem de manobra ao nível do financiamento do que outras entidades, o que lhe
permite ter melhores infraestruturas e equipamentos.
Por outro lado, as dez entidades com pior prestação em
perdas de água apresentam valores que preocupam por serem tão elevados. A
Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros perde 641 litros de água por dia por
ramal, enquanto a Câmara Municipal de Arruda dos Vinhos perde 535 litros, a
autarquia de Silves perde 489 litros, a câmara de Peso da Régua 483 litros e a
de Estremoz perde 412 litros de água diariamente por ramal. Abaixo de 400
litros, surge a Infratróia, que perde 399 litros, a Câmara Municipal de São Brás
de Alportel que totaliza uma perda de 368 litros diários, a Câmara Municipal de
Moimenta da Beira perde 367 litros, a autarquia de Cabeceiras de Basto
desperdiça 366 litros e, finalmente, a SIMAR de Loures e Odivelas fica-se pelos
356 litros diários. Já as maiores percentagens de água não faturada
verificam-se na Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, que não fatura a
quase totalidade da água que providencia – 81,2% –, na Câmara Municipal de
Cabeceiras de Basto, que soma uma percentagem de 72,2%, na autarquia de Santa
Marta de Penaguião que não fatura 72% da sua água, na Câmara Municipal de
Moimenta da Beira que soma uma percentagem de 71,3%, na Câmara de Castelo de
Paiva que não fatura 70,7%, e nas autarquias de Chaves (69,2%), de Estremoz
(69,2%), de Mação (69%), de Murça (68,4%) e de Aguiar da Beira (68,3%).
Onde está a reabilitação? A manutenção das condutas é
fundamental para minimizar as perdas de
água e, consequentemente, reduzir as percentagens de água não faturada. Não se
estranha, por isso, que esse seja outro dos indicadores estudados pela ERSAR. A
entidade escreve que “a nível de Portugal continental, a reabilitação de
condutas é insatisfatória no serviço em baixa e no serviço em alta, indiciando
potencial de melhoria com uma prática continuada de reabilitação de condutas”.
Existem, no país, 108,757 quilómetros de condutas de água.
Mas os dados vão mais
longe: nos últimos cinco anos foram reabilitados 1998 quilómetros de condutas
no país – apenas 0,6% por ano. E a entidade reguladora não dá tréguas:
“considera-se haver claras oportunidades de melhoria, sendo importante que as
entidades gestoras avaliem a necessidade de implementação de programas de
reabilitação de condutas”.
Apostar na eficiência e na prevenção Para a Quercus, como
para a Zero, as palavras de ordem em relação à água são eficiência e prevenção.
“Devia haver incentivos para a eficiência hídrica, da mesma forma que há para a
energética. Mas ainda estamos muito longe disso, não só a começar pelas
próprias entidades que continuam a ter perdas, mas também nos próprios
equipamentos em geral”, lamenta Carla Graça. Para Carmen Lima, além da
responsabilidade das entidades do setor em garantirem valores de perda de água
o mais reduzidos possível, deve também haver uma maior educação quanto ao uso
do recurso junto da sociedade.
“Esta semana estava a ver umas declarações do secretário de
Estado do Ambiente a dizer que este ano já não haveria problemas em relação à
água, mas o que é facto é que isto é sistemático: quando há uma seca ficamos
todos muito preocupados com a insuficiência da água e agora que estamos em
período chuvoso esquecemos o problema até à próxima seca. Devíamos era estar a
promover uma melhor gestão”, conclui a especialista da Zero.
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