Cada vez que uma moeda é encontrada na freguesia da Rua suspeita-se que seja oriunda do período Romano. O caso não é para menos. Nos últimos 300 anos foram muitas as moedas aí encontradas relativas a esse período. Pena é que a maior parte das vezes os objectos encontrados rumaram a outras paragens. Tal não acontecesse e hoje tínhamos na Rua abundante material para o estudo da numismática e também da história local. A romanização no concelho de Moimenta da Beira é indiscutível e na freguesia da Rua é cada vez mais uma verdade absoluta. Porém, nem todos os artefactos que ainda se vão encontrando no espaço cercanejo à capela de S. João, entre a Granja dos Oleiros e Vide, onde se crê ter existido uma cidadela romana, são do período clássico.
Há muitos outros vestígios, aparecidos nesse local, pertencentes a outras épocas da história. O que se compreende. Em regra, sempre houve tendência para uns povos ocuparem o espaço dos povos anteriores, por variadas razões, mas sobretudo porque a ocupação anterior se filiava a critérios de escolha que incidiam sobre os locais com as melhores propriedades de defesa e subsistência (férteis).
A moeda que recentemente me chegou às mãos, propriedade do Sr. Hélio Castro, da mencionada freguesia, está parcialmente carcomida e é portadora de pormenores que não a identificam à primeira vista. Esses escassos elementos foram, todavia, o suficiente para eu afastar logo as presunções de ser esta uma moeda romana. As moedas romanas, em circulação durante a maior parte da República e do Império Romano do Ocidente, incluíam o áureo de ouro; o denário de prata; o sestércio de bronze; o dupôndio de bronze; e o asse de cobre. Estas denominações foram utilizadas de meados do século II a.C. até meados do século III d.C. A moeda encontrada, visível nas imagens que apresento não corresponde a nenhuma destas.
Posta de parte, de imediato, a hipótese da filiação romana da moeda, também cedo percebi não se tratar de uma moeda leonesa ou muçulmana. Suspeitei estar na presença de uma moeda portuguesa, isto é forjada depois da constituição de Portugal como reino independente. Os elementos heráldicos que parcialmente se vislumbravam faziam-no crer como uma verdade quase absoluta. Mas que moeda seria? Foram várias as que se usaram depois do século XII, nomeadamente o morabitino (moeda árabe já anteriormente usada) a libra, o real branco, o ceitil, o espadim, o soldo, o dinheiro, o cruzado, o pataco, o vintém, o cinquinho, o dobrão, o tostão, entre muitas muitas outras.
As primeiras moedas portuguesas terão sido produzidas ainda no reinado de D. Afonso Henriques (embora continuassem a circular moedas romanas, leonesas e muçulmanas) certamente depois de ter sido reconhecido pelo Papa como rei. São pequenos espécimes feitos de bolhão, uma liga de cobre e de prata: o dinheiro e a medalha, esta valendo metade de um dinheiro. O dinheiro continuava a tradição do denário romano, que servira de união monetária do vasto Império e que os Bárbaros mantiveram depois da queda de Roma, em espécimes profundamente adulterados. Nos reinos da Europa Medieval corriam moedas idênticas ao dinheiro, que se manteve em circulação até ao final da primeira dinastia portuguesa. A palavra mealha, de onde vem a palavra mealheiro deixou de fabricar-se a partir de D. Afonso II (1211-1223), mas manteve-se engenhosamente na prática. Como a mealha era metade de um dinheiro, ao precisarem dela para trocos, cortavam aquele em duas metades... Essas moedas de bilhão tinham numa das faces a Cruz da Ordem do Templo. A partir de D. Sancho I, a cruz passou a ser cantonada por quatro cravos, evocando a que teriam pregado Jesus. Descobrem-se também nestas moedas os chamados sinais ocultos destinados a impedir a falsificação. A moeda encontrada na freguesia da Rua não parecia encaixar em nenhuma destas características. Continuei a estudar os reinados posteriores.
A partir de D. Afonso III aumentou consideravelmente a produção de dinheiros de bolhão, o que ficou a dever-se à política económica deste rei, criando feiras e mercados. Também D. Dinis continuou esta política incrementando o número de feiras e aumentando os privilégios aos feirantes e o numerário em circulação, indispensável ao comércio. Nos reinados seguintes continuaram a fabricar-se dinheiros de bolhão, denunciando uma carência de metais nobres em Portugal.
Estudar as moedas em circulação em todos os reinados era tarefa muito árdua, pelo que procurei comparar algumas moedas hoje depositadas nalguns museus com a moeda em estudo. A minha base de comparação foi o período moderno, aquele em que suspeitei desde o início filiar-se a moeda encontrada perto da capela de S. João. Pela cunhagem da moeda cheguei à conclusão de que era do reinado de D. Sebastião (1554 – 1578), o que veio a confirmar-se pela reconstituição dos elementos nela constantes. Além da cunhagem apresentar pormenores idênticos ao geral das moedas cunhadas durante esse período, foi possível completar os elementos em falta.
Se a face principal da moeda continha apenas um V (5) romano que aludia ao valor de 5 réis contendo legenda “SEXTAS DECIMUS REX”, o anverso não era anepigráfico, ou seja, possuía legenda que agora era fácil completar. Inicialmente conseguia ler apenas “SE… BIORUM…. Foi possível completá-la da seguinte forma: “SE[BASTIANUS] [REX ….] [ALGAR]BIORUM. Ao centro visualiza-se um escudo real coroado.
Trata-se, por conseguinte, de uma moeda com cerca de quinhentos anos, pertencente ao reinado de D. Sebastião, um período em que o numário é aumentado sobremaneira, e cunhada com as armas desse rei de Portugal e dos Algarves, como aparecia nos documentos e também nas moedas. É sem dúvida mais um elemento de grande importância para a freguesia da Rua e para o estudo da sua história local. É também mais um esparso que ajuda e de que maneira a compreender o povoamento de toda a sub-região compreendida entre os vales do Távora, Tedo e Varosa. No fim, é mais um vestígio que se presta a provar a multiplicidade e pluralidade de ocupações de uma terra com uma história muito rica e da qual continuam a brotar artefactos como que clamando por uma escavação que no futuro ponha esta terra na rota das que mais se prestam ao estudo das eras passadas.
Publicado na última edição do Jornal Terras do Demo
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