domingo, 6 de junho de 2010

«A História da Nossa Terra» - As 52 amas de leite da Roda de Moimenta da Beira

É comum ouvir que antigamente as pessoas viviam muitos anos, que os jovens apenas iniciavam a sua convivência sexual depois de celebrado o casamento, que a violência é um fenómeno recente e que as sociedades antigas eram muito mais regradas. A história mostra que isso é mentira. Como errada é a ideia de que a assistência social aos pobres, aos desvalidos e aos desprotegidos é uma coisa dos nossos dias. Não é. Não apenas várias associações confraternais foram criadas nas eras passadas com objectivos assistenciais como ainda por parte da cúspide do poder político, nacional, regional e local foram decretadas e postas em marcha uma plêiade de medidas nesse campo. Um dos mecanismos surgidos na Época Moderna no campo do combate ao infanticídio e protecção à infância, foi a criação do ofício das amas de leite e as rodas, objectos existentes em determinados edifícios que serviam para “expor” ou “entregar” crianças enjeitadas. Sobre eles centrar-se-à este artigo.
O costume de abandonar crianças à porta de famílias endinheiradas na tentativa de que as criassem, foi prática rotineira desde os tempos mais remotos. Porém, nalguns casos, essa acção foi fatal, pois conhecem-se casos em que os bebés eram devorados por cães esfomeados que pela ruas vagueavam. O que motivava os pais a abandonarem os filhos em determinadas portas era a esperança de nunca perderem rasto à criança, o que não aconteceria na roda.
A primeira “roda de expostos” de que há notícia já estaria em movimento em 1188 na cidade francesa de Marselha. Em Portugal, existiram desde cedo inúmeras rodas em determinadas casas, conventos e outras instituições religiosas, sendo a sua existência reconhecida pelo poder político e objecto de medidas legais. Em regra, as Câmaras Municipais tinham os seus “Regulamentos dos Expostos”, cabendo-lhes suportar as despesas com as rodas, as amas de leite, curativos e funerais. Daí que muitas delas, na escassez de meios, entregassem as crianças a rodas de outros municípios. Porém, foi pelo cunho de D. Maria I e Diogo Inácio de Pina Manique (fundador da Casa Pia em 1781) que a roda foi revestida de algum oficialismo.
A exposição frequente, que decorria do elevado índice de nascimentos, legítimos e ilegítimos, baseava-se na esperança ou desejo de que a criança fosse cuidada e criada. A pobreza, a miséria e o produto de uma relação ilegal eram geralmente as razões que ditavam a entrega dos recém nascidos, a que se somavam outras de ordem social moral e económica.
As Casas da Roda não eram fixas, mudando de sítio ao longo do tempo, tal como aconteceu em Moimenta da Beira. Funcionavam durante todo o dia, muito embora a maior parte dos bebés fosse entregue no decorrer da noite, para que não se descobrisse a identidade dos progenitores. Era essa a grande vantagem das rodas: estimulava a prática da “exposição” em detrimento do infanticídio, garantindo a sobrevivência da criança num processo sigiloso que salvaguardava o anonimato dos pais. Um pequeno sino assinalaria a presença da criança que faria a mulher “rodeira” girar a roda e proceder à sua recolha no interior. Essas instituições tinham sempre prontas várias mortalhas, já que algumas das crianças eram expostas sem vida.
Em regra, os bebés eram depositados com um enxoval, alimentos, objectos ou símbolos mágico-religiosos e pequenos bilhetes com indicações ou recomendações como o nome com que deveriam ser baptizados. Após a recolha das crianças era-lhes atribuído um número e recebiam um nome, normalmente do santo ou santa que se venerava nesse dia. Os mais debilitados, temendo-se que falecessem, eram de imediato baptizados. Em circunstâncias normais ficariam à guarda da Casa da Roda até serem entregues a uma ama de leite.
As amas de leite eram pagas pela Câmara. A disponibilidade ou não de mulheres para o exercício deste ofício variava consoante os municípios. Na falta delas, chegou-se a conceder benefício aos seus maridos, tais como isenções de impostos e de serviço militar. Para suprir a escassez de amas, alguns municípios chegaram mesmo a comprar gado para a obtenção de leite.
A figura da ama de leite não era apenas um ofício usado nos contextos sociais e económicos referidos. A ama interna era, na Europa Central, a solução preferida nos meios da nobreza e da grande burguesia, tal como se pode visualizar no quadro que apresento de Charles Beaubrun, feito por volta de 1640, que representa o futuro Luís XIV e sua ama de leite (encontra-se em Versalhes no Musée National du Château et des Trianons). Ter ama possibilitava à mãe uma maior liberdade para a prossecução das suas tarefas quotidianas, além de que a vida conjugal não era afectada por uma abstinência sexual durante o largo período da aleitação. À época, acreditava-se que as relações sexuais corrompiam o leite, o que colocava o homem perante duas soluções: buscar amores clandestinos ou arriscar e pôr em causa a vida do filho. Talvez por isso muitas mulheres enjeitassem a aleitação.
A aleitação que ultrapassasse os motivos assistenciais, não era uma prática por todos aceite. Francisco da Fonseca Henriques, médico de D. João V, escrevera no Socorro Delphico: “[...] lastima he que a pomposa vaidadeda gente preza esta maravilhosa obra da divina providencia, negando contra os dictames da razão, e contra as leys da mesma natureza, a seus filhos o proprio leyte […] entregando-os a amas”. A maior parte dos tratados médicos referiam que para ser ama de leite uma mulher dever-se-ia livrar das “payxoens de animo porque viciam tanto o leite que causam acidentes epilepticos nos meninos”. Por imperativos de ordem moral, as amas deveriam ser casadas. As relações sexuais estavam-lhe interditas durante o aleitamento. Todavia, não o cumpriam, pelo que algumas foram expulsas. Mas este ofício não trazia apenas desvantagens. Entendia-se que a boa criação dependia do leite, o leite do sangue e o sangue da comida, pelo que muitas das amas satisfariam as carências alimentares de muitos anos, talvez de uma vida.
Através de um rol da Câmara Municipal de Moimenta da Beira, não datado, mas que presumo ser do século XIX, sabe-se que eram 52 as amas de leite a quem a autarquia pagava a aleitação. Algumas residiam fora do concelho. Este número expressivo faz presumir uma alta taxa de natalidade e sobretudo uma alta taxa de “enjeitamento”. Se a exposição de crianças advinha de relações proibidas tal apontará ainda para uma alta taxa de ilegitimidade. Seguem-se as amas segundo a sua residência: Moimenta – Rosa Joaquina; Maria Jorge; Ana Barradas; Maria da Conceição; Maria Matilde; Ana da Conceição; Umbelina de Jesus; Maria Gesta; Leonor do Nascimento; Josefa Jesus; Aldeia – Margarida Baptista; Luísa Maria; Maria da Assunção; Arcozelo – Maria Teresa; Rosa Carlota; Gertrudes Maria; Baldos – Piedade Pereira; Matilde Rosa; Beira Valente – Maria Pereira; Antónia Pereira; Ana Cândida; Carapito – Maria Joaquina; Castelo – Luísa de Jesus; Vitorina do Carmo; Ana do Carmo; Ana do Carmo; Cabaços – Maria da Encarnação; Ana Gomes; Justina Rosa; Paradinha – Ana de Figueiredo; Ana Josefa; Ana da Encarnação; Maria Eufrásia; Penedono – Maria Lima; Ponte – Sebastiana Lourença; Teresa de Jesus; Rita Ferreira; Constança Rosa; Teresa de Jesus; Sarzedo – Maria José; Maria do Céu; Ana Machado; Maria Cardoso; Maria José; Cecília Rosa; Tabosa – Rita Sousa; Toitão – Ângela Angelina; Josefa Maria; Maria Delfina; Vilar – Umbelina de Jesus; Maria Rita; Maria Carolina.

Autor: Jaime Ricardo Gouveia

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