terça-feira, 23 de março de 2010

«Crónica» - "A História da Nossa Terra"

Os leomilenses e o cognome de Judeus
O judaísmo é a única religião da antiguidade pré-clássica que persiste nos dias de hoje e foi a primeira religião monoteísta. O Judaísmo português é ainda muito pouco conhecido, ignorando-se, entre muitas outras coisas, o nome dos seus maiores pensadores e místicos. A ideia geral que se tem está vinculada à perseguição que lhes lançou a Inquisição criada no reino luso em 1536. É um conhecimento simplista e não condicente com a verdadeira importância que a comunidade judaica teve em Portugal.
A importância do judaísmo em Portugal é desde logo apreensível na arte, tendo os pintores Nunes Gonçalves e Vasco Fernandes (Grão Vasco), representado judeus. Sinal de que o judaísmo esteve omnipresente no nosso meio local é a alcunha que hoje os habitantes de Leomil têm: Judeus. Não se trata de uma alcunha depreciativa pois qualquer leomilense tem honra em assumi-la, muito embora a maior parte não saiba explicar o porquê de tal apelido. Trata-se de uma tradição que se arreigou, persistiu e para a qual há 3 teorias.
1 – Durante um sermão na época da Páscoa, condenando o pouco fervor dos leomilenses que não cumpriam as suas obrigações cristãs, um padre tê-los-à epítetado de judeus.
2 – Em tempos antigos, uma epidemia grassava com intensidade na região. Em Leomil atacou, sem piedade, três gerações da família Malta. Maria Malta, alarmada por alguns casos fatais, fez uma promessa. Se os Malta escapassem ela faria uma encarnação nova à imagem já velha e desbotada de um santo. A verdade é que a família foi poupada e Maria Malta cumpriu o prometido. Contratou um artista que pintou o tal santo mas com cores tão garridas e carnavalescas que ninguém em Leomil aprovou. Alvo de duríssimas críticas e murmúrios chocantes Maria Malta não aguenta o ambiente de má-língua e desloca-se à igreja em busca de perdão. No entanto, desorientada finca as unhas nas faces da imagem esfregando-a até desfazer o vivo das cores. É então que os leomilenses apercebendo-se do que acontecera passam a chamá-la judia, e o nome mais tarde passa para toda a população.
3- Em Leomil há um sítio chamado do cancelo e outro chamado guardal. Esses sítios foram judiarias e pelo facto dos judeus se terem misturado com os cristãos inclusive os que pertenciam às famílias proeminentes a nível local, todos os habitantes passaram a ser chamados de judeus.
A teoria que me parece mais verosímil é a terceira. Depois da destruição de Jerusalém pelos romanos em 70 d. C começou a maior Diáspora dos judeus que se universalizaram e passaram a constituir pequenas comunidades dentro de outros estados. É crível que tenha sido por esta altura que se fixaram na Península Ibérica, onde permaneceram até aos tempos da reconquista cristã, na qual participaram activamente ao povoarem os territórios reconquistados pelos cristãos.
Leomil foi, nos tempos da reconquista, tomada aos mouros pelo conde D. Henrique juntamente com os irmãos cavaleiros D. Paio Rodrigues e Garcia Rodrigues e fora desde logo instituída como Couto, doado a Garcia Rodrigues como recompensa dos serviços prestados na árdua empresa da reconquista. Um Couto era uma porção de terra demarcada, dada pelo rei à Igreja ou à nobreza, com certas isenções e privilégios.
De entre esses privilégios do Couto de Leomil que no século XIV se transforma no maior do Reino com 276 km2 e uma população de 6060 habitantes, destaca-se o facto de os senhores do Couto deterem um poder extremo e considerável que se estendia a todos os campos, inclusive ao da justiça. Neste seguimento os Coutos eram espaços verdadeiramente autónomos porquanto os funcionários judiciais do rei não poderiam aí entrar a menos que o senhor proprietário autorizasse. Se um qualquer condenado fugisse e entrasse no Couto, ficaria a salvo, pois enquanto aí permanecesse os funcionários do rei, como não poderiam aí entrar, estavam impedidos de capturá-lo. Esta era uma importante estratégia para atrair o povoamento. E, por esta razão, os Coutos foram em certa medida espaços de integração, de diversidade cultural, étnica e religiosa. Assim, portanto, as minorias religiosas como os judeus, eram efectivamente atraídos para estes Coutos, o que aconteceu em Leomil onde existiu uma comunidade judaica que aí constituiu uma judiaria.
A comunidade judaica leomilense já existia na Idade Média, mas com a chegada a partir dos inícios do século XVI de determinadas famílias como os Lucenas, ela persiste e é aumentada. Contudo, a partir do século XVI a convivência entre cristãos e judeus não mais seria pacífica. O anti judaísmo de cariz religioso e mental agravou-se com a expulsão dos judeus de Espanha decretado em 1492, pois grande parte deles refugiam-se em Portugal. Tendo-se acentuado a instabilidade social contra os judeus nos últimos tempos do reinado de D. João II, D. Manuel por razões de política peninsular e por razões sociais internas, decretou a expulsão de hereges, mouros e judeus em 5 de Dezembro de 1496. Para evitar a saída, grande parte deles, em 1497, converteram-se em massa, passando a ser designados de cristãos-novos. Porém, na prática, continuaram judeus convictos.
A actividade da Inquisição portuguesa, dedicou-se maioritariamente, à perseguição dos falsos conversos, isto é, os cristãos-novos que mantinham crenças e actos judaicos. Foram vários os indivíduos processados por judaísmo no concelho de Moimenta da Beira. Esses processos estão na Direcção Geral de Arquivos Torre do Tombo, em Lisboa. Muitos desses indivíduos processados eram leomilenses, o que abona em favor da teoria de que o cognome de judeus advém da existência de uma comunidade judaica em Leomil, com raízes antigas e que, tudo leva a crer, desapareceu já nos idos do século XVIII altura em que a Inquisição entrou em Leomil e, de uma assentada, processou uma família inteira de judeus.


Autor: Jaime Ricardo Gouveia
in Jornal Terras do Demo - 08 de Março de 2010

3 comentários:

pedro jota disse...

Como tu dizes, é uma honra assumir tal alcunha!Gostei da Crónica e tambem vou mais pela terceira teoria.

Jaime Gouveia disse...

Pedro: obrigado! Viva Leomil :)

Orianne disse...

Gostei muito de ler esta crônica de Leomil. Meu tio Augusto chamou-me Judéa e nunca cumprindi o que significava este nome. Perguntei a minha mae e ela me disse que o meu tio dizia que eu era uma comica. Parece que era um tabou de falar de judeus na familia. Sempre teve uma attracao para a cultura judaica sem saber que minha família era judeia. Que bom de saber que Malta é um nome de judéa.
Desculpa para o meu portuguese sou belga e não falo bem português. Uma abraço para minha família de Leomil. Gisele da Silva Malta.