segunda-feira, 14 de junho de 2010

«A História da Nossa Terra!» - Póvoa Velha, Bravilamte, Beira Valente e sua confraria do Divino Espírito Santo

Beira Valente está ligada a Leomil por uma estrada que em 1910 Julião Morais Sarmento tentou que fosse prolongada até Castelo. A Câmara fez um projecto mas ficou-se por aí. Atravessada pela via, reclina-se suavemente pela encosta da Barra, entre casarios numa compilação urbanística ao jeito medievo. Em redor da povoação combinam arvoredos verdejantes e floridos com lameiras de pascigo, em doces emanações de fescura que lhe envia o ribeiro que desliza a seus pés, remançoso e cristalino, entre as leiras fecundas onde crescem mimos pujantes e hortas viçosas.
Bonita e bem lavada de ares é uma aldeia de quietude patriarcal de viver provinciano. Galgando a estrada que em pronunciado declive atravessa o primitivo povoado, deparam-se-nos rústicas habitações. Assente no pico do monte, ergue-se altaneira e senhoril esta aldeia, olhando das alturas a líquida fita coleante que se alonga por entre alcantis agrestes e prados verdejantes. Ao cimo da empinada ladeira aparece-nos de fronte a capela, uma das maiores relíquias de antanho de que esta povoação é depositária. A bordá-la encontra-se o magnífico adro suportado pela portentosa fonte.
Os recantos e ruelas de feição rural revelam a ancianidade da povoação e o seu carácter estético deve-se em parte ao seu isolamento que a via melhorada que a liga à vizinha povoação do Sarzedo, outrora pertencente ao concelho de Leomil, veio ajudar a combater. Para lá da Barra, até ao horizonte infindo, um panorama maravilhoso, vastíssimo, cuja contemplação avassalada pela grandiosidade da paisagem deslumbra pelo encantamento que nos traz ao olhar. Colmas, cursos de água, matagais, pontes, estradas, casais, muros e valados, tudo parece impreciso e de ilimitada grandeza naquele marchetado tapete de variegado colorido e inconcebível variedade de desenhos.
Beira Valente te-se-à chamado, em tempos remotos, Póvoa Velha. Isso parece indicar um documento de 1335 que diz “da Poboa Velha per u chamam Beyra Varenta.” O nome alude à antiguidade do povoamento deste local. Na verdade, próximo existe o local designado de Cargancho, já perto do parque industrial do concelho, onde foram encontrados vários vestígios arqueológicos. No censo joanino de 1527 aparece já com o nome “quymtam de Bravilamte.” Em 1758 na Memória Paroquial de Leomil figura como metade pertencente ao concelho de Leomil e outra metade pertencente ao concelho de Castelo.
A sua capela, bordejada por um magnífico adro, teve uma célebre confraria devota ao Divino Espírito Santo mas que celebrava também a festividade de Santa Bárbara e S. Sebastião. Do património que possuía destacam-se imagens, ornamentos e móveis, um forno e rendimentos fundiários. Os vestígios destas associações religiosas são antiquíssimos. O valor da sua contribuição para a dignidade e esplendor do culto público é inegável, e a sua contribuição no exercício da acção social e os primeiros ensaios de previdência e assistência públicas, altamente beneméritas.
As confrarias foram uma das formas de vivência colectiva mais importantes e singulares do Antigo Regime, tanto nas cidades como nos meios rurais. Associações de laicos mas com carácter religioso, reuniam de modo organizado um certo número de pessoas. Estabeleciam-se com um objectivo pio, social, cultual e cultural. Os mais humildes e de mais fracos recursos encontrariam na confraria a família artificial que os integrava e acolhia, criando-lhes ou fortalecendo-lhes as raízes sociais e humanas. Irmanavam-se. Tinham a certeza de serem visitados na doença, na velhice, e sufragados na morte. Para os que tinham alguns recursos as confrarias eram um meio de ascensão. Por fim, os mais opulentos, encontravam nas confrarias um espaço que lhes permitia manifestar a sua riqueza – ostentando-a ou prodigalizando-a.
Pela análise das receitas e despesas da confraria do Divino Espírito Santo de Beira Valente, possibilitada pelos registos que dela ficaram lavrados, uma das maiores preocupações eram as festividades. A sua função assistencial era também manifesta, uma vez que o exercício das obras de piedade ou de caridade estavam inerentes à função religiosa, porquanto uma das pedras basilares do cristianismo é a ajuda mútua entre irmãos. As confraternidades eram assim uma forma de sociabilidade apreciável. Constituíam um lugar de pretexto para reunião, encontro, troca de ideias e emoções, experiências e preocupações. Eram ainda um veículo de expressão da colectividade, onde se dava largas a um dinamismo muitas vezes contido por não ter onde se evidenciar. E, ainda, um móbil que tornava a vida mais cheia, quebrando a rotina quotidiana. Talvez por isso a sede do concelho, Leomil, tivesse cinco: Santíssimo Sacramentos; Fiéis de Deus; Nossa Senhora; Nome de Jesus e N. Senhora dos Passos.
É crível que a confraria de Beira Valente tenha sido criada durante a época moderna, pelo triunfo, nesse período, de novas devoções e de movimentos confraternais de carácter mais cultual e religioso, mais litúrgico do que assistencial, criando-se uma interligação mais funcional e íntima entre confrarias e paróquias. Quando terá sido extinta? Não se sabe, mas possivelmente por alturas da legislação liberal, possivelmente com o novo quadro normativo republicano.
A maioria dos elementos da irmandade do Divino Espírito Santo de Beira Valente eram leigos, incluíndo apenas alguns clérigos. Estes, serviam sobretudo como escrivães, mordomos e juízes. Não existiam mulheres confrades. O cabido geral, assembleia dos confrades, era o principal órgão administrativo da confraria e reunia nos meses de Primavera e Verão, coincidentes com as festividades do santo patrono.
O juiz desta confraria era, em regra, o pároco de Castelo, existindo depois um mordomo e um escrivão. Nalguns casos, quem dirigia as sessões era o pároco de Leomil, mas sempre por comissão do padre de Castelo. Certamente que existiriam também os ofícios de tesoureiro, procurador e andador, mas sobre eles nada se sabe. A eleição dos mordomos efectuava-se na presença do pároco de Castelo e realizava-se na sacristia da capela. Os cargos eram apenas honoríficos, exceptuando o de andador. Em regra, cargos mais proeminentes eram ocupados pelos mesmos indivíduos durante largos anos.
A partir de 1839, aparecem nesta confraria novos oficiais: regedor e presidente da Junta de Paróquia, secretário e tesoureiro. Em 1818 a confraria despendia 3200 réis com o sermão da festa do Espírito Santo. A despesa mais avultada era relativa às festividades da aldeia – 478.650 réis entre 1798-1850, 37% da despesa total, seguindo-se os gastos com a capela, 18,3%, depois os gastos com a cera, 190.575 réis no mesmo período, depois os concertos do forno e finalmente outras despesas menores tais como a compra de sabão, azeite, vinho etc.
A confraria era auto-suficiente e a sua situação económica era estável. A sua existência girava em torno da festa do padroeiro. Tudo o resto era conducente à concretização daqueles objectivos. Tinha um património próprio, de alfaias religiosas e outras, um forno e uma leira. Era esse forno que suportava todas as suas despesas. Entre 1798 e 1850 rendeu 1.443.655 réis, ou seja, 93% do rendimento total da confraria.

Autor: Jaime Ricardo Gouveia

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