domingo, 18 de julho de 2010

História da Nossa Terra

A Casa da Moimenta, misticismo judaico?


Numa das últimas edições do jornal Terras do Demo, o distinto colunista Eurico Alves além dos rasgados elogios que teceu acerca do meu trabalho, que desde já agradeço, desafiou-me a dar o meu parecer acerca da emblemática e mística Casa da Moimenta, o que agora faço com prazer.

Quando em Agosto de 2009 publiquei o meu quinto livro, intitulado Os pelourinhos do concelho de Moimenta da Beira, a convite da Câmara Municipal, mais não fiz do que oferecer ao município um estudo aprofundado sobre a natureza, as atribuições, as competências e a historicidade desses monumentos simbólicos incontornáveis para a história do municipalismo português: os pelourinhos. Além do carácter de estudo que assume, procurei ainda imprimir ao livro um cariz de manual sobre a réplica do pelourinho de Moimenta da Beira que foi construída no Terreiro das Freiras segundo o desenho que construí baseado numa rigorosa investigação histórica. Fiquei bastante orgulhoso do pelourinho que gizei, pois através dele foi possível repor alguma justeza histórica no concelho de Moimenta da Beira que falta ainda repor nos antigos concelhos de Pera e Peva, Nagosa e Segões. Nesse estudo, ocupou particular atenção a análise da Casa da Moimenta, pois decidi apor numa das faces do capitel do pelourinho a figura antropomórfica conhecida como “a Moimenta” que deu origem ao nome da casa onde se encontra.

A Casa da Moimenta, situada numa das ruas mais antigas e tradicionais da vila, corresponde, de facto, a uma habitação quinhentista. Simples, de rés-de-chão, feita de pedra, argamassa, madeira e telha, apresenta alguns motivos artísticos de incontornável valia. Entre eles, assumem destaque alguns elementos ornais no lintel do portal, compostos por uma inscrição cronológica, uma inscrição onomástica e alguns motivos com esmero de execução notável, de onde sobressai uma figura antropomórfica, uma espécie de mó e motivos florais tais como florões quadrifloriados. Sublinhe-se que não há grande racionalidade na disposição de todos os elementos ornais, o que não deixa de me inquietar quanto ao facto da decoração ali constante pertencer ou não à primitiva traça do edifício.
Quanto à datação ali constante, não se conhece acontecimento importante que justifique a inscrição, remetendo para a data da construção da obra. No que diz respeito ao nome Roiz, abreviatura de Rodrigues, devo confessar o meu cepticismo pela estranheza do pormenor. Não era comum a gravação do cognome no lintel do portal nesse período. Acresce para mais que, Rodrigues, não era nome de família importante em Moimenta da Beira. Do mesmo modo desconhecem-se ligações do apelido à elite local como acontece com Lucenas, Mergulhões, Sousa Machados, Almeidas, Carvalhais, Sarmentos, entre outros. Em contrapartida, Rodrigues, é talvez o apelido mais associado a famílias judaicas. Após a conversão forçada dos judeus decretada por D. Manuel I deixaram de existir judeus em Portugal, passando a existir os cristãos-novos, ou seja, os recém conversos ao catolicismo. Porém, muitos destes “cristãos-novos” continuaram as suas práticas judaicas o que suscitou o descontentamento dos “cristãos-velhos”, sendo esse um dos poderosos pretextos para a introdução da Inquisição em Portugal em 1536. Para limpar ou esconder aos olhos do vulgo o seu passado judaico que lhes sobrevinha no nome, muitos dos “cristãos-novos” adoptaram um apelido cristão, sendo Rodrigues um dos mais comuns.

Através de apuradas pesquisas na Torre do Tombo verifiquei que dos vários processos por judaísmo relativos a indivíduos de Moimenta da Beira, não parece haver ligações totalmente seguras com a Casa da Moimenta. Em 1612 foi processado um Francisco Rodrigues, cardador, de Moimenta da Beira. Anos depois, em 1686 foi processado outro Francisco Rodrigues, cristão-novo, natural de Freixo de Numão, sapateiro de profissão e residente em Vide. Também no livro de um estanqueiro, Diogo Soares, de Moimenta, apreendido pela Inquisição, aparecem nomeados alguns seus clientes, tais como um Luís Rodrigues que trabalhava em 1724 para as freiras de Moimenta; o padre José Rodrigues e o capelão das freiras Manuel Rodrigues. Finalmente, nos anos 30, seria processada uma família inteira de judeus de Leomil, um dos quais Manuel Rodrigues.

Seria algum dos referenciados proprietário da Casa da Moimenta? Seria a Casa da Moimenta uma casa judaica ou pertença de um cristão-novo? Não se sabe. Porém, sabe-se que os cristãos-novos tinham como uma das principais ocupações o comércio e esta casa situava-se numa das mais prominentes ruas da primitiva vila, onde se situavam, por certo, os pontos do comércio. A tudo o que vem a ser dito soma-se um pormenor importantíssimo no interior da Casa da Moimenta. Refiro-me a um nicho de oração e a dois símbolos: uma rosácea de seis pétalas e uma cruz latina. Se submetermos a rosácea a uma pequena rotação, obtemos uma estrela de David que conjuntamente com a cruz latina poderá significar “novo cristão, ou cristão novo”.

Quanto ao nome cristão, poderia ser gravado no lintel da porta com o objectivo de limpar os antecedentes judaicos. No que respeita à figura antropomórfica, conhecida como “a Moimenta” ela não diz respeito a um carrasco como a tradição oral pretendeu perpetuar. Trata-se de uma máscara mortuária com uma ligação simbólica à fundação da primitiva localidade Monumenta, que faz alusão à necrópole dos povos proto-históricos de Leomil e Caria. Diz-se que por aqui morreu ou foi morto um importante rei com os seus vassalos. Não seria o avô dos primeiros couteiros de Leomil, D. Garcia Moniz que se sabe ter falecido em guerra com os mouros perto de Lobozaim (Cabaços, Castelo, Nagosa) aí por volta de 1057? Seria a figura da Casa da Moimenta uma alusão simbólica a esse rei e a fundação da própria Monumenta? É possível. Além do mais, a própria ideia de morte para a qual aponta, é uma simbologia da ideia de justiça, de uma terra de justiças, com pelourinho e, portanto, concelho autónomo. É que, esta ideia de JUSTIÇA tem ligações à fundação da localidade e do próprio concelho. Há vários pelourinhos em cujos ornamentos se enquadra a noção de justiça, de que é exemplo o da Rua.

Muitos outros aspectos poderiam fazer parte desta análise. O misticismo da aludida casa não se esgota nestas escassas palavras. Só espero que ela nunca venha a ser alvo do modernismo desenfrado que hoje vigora, responsável pela desvirtuação dos centros históricos perante o imobilismo dos poderes públicos. Esta é, para já, a casa mais importante de Moimenta da Beira! Convém não esquecer!

Publicado na última edição do Jornal Terras do Demo

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