quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O concelho de Moimenta da Beira há cem anos atrás

Em 1910, o concelho de Moimenta da Beira era profundamente distinto do que é na actualidade. Não apenas no que concerne ao espaço físico da vila, das áreas populacionais, dos edifícios e espaços públicos, políticos e privados, como também no que respeita às populações, nomeadamente as suas condições de vida, as suas ocupações, a sua sociabilidade, e tantas outras variáveis que gravitavam nesse micro-cosmos social.

A nossa vivência actual supera incomparavelmente as carências de então. Apenas para citar alguns exemplos, dir-se-á que não havia luz eléctrica, gás, água ao domicílio, saneamento básico ou recolha de lixo. A sede do concelho tinha escola para os dois sexos, estação postal e de telégrafo com serviço de emissão de vales do correio e telegráficos, cobranças de recibos, letras e obrigações, e serviço de encomendas. Tinha feira nos terceiros domingos de cada mês e nas primeiras segundas-feiras de cada mês. Publicavam-se os jornais Fins do Século (desde 8 de Janeiro de 1893) e Norte da Beira (desde 6 de Abril de 1891).

O concelho era, tal como hoje, composto de vinte freguesias, e na sede existiam advogados, médico, farmácia, notários, agências bancárias e de seguros, residenciais, diversos estabelecimentos, e entre os bens mais transaccionados encontravam-se os produtos agrícolas, nomeadamente a batata, o centeio e o milho.

Em meados dos anos trinta, a título de exemplo, apenas dois carros existiam na vizinha localidade, Leomil e não muitos mais haveria na sede do concelho. Na mesma época cifravam-se em 6 centenas de escudos, hoje correspondente a apenas 3 euros, o salário de uma individualidade da máxima importância no mundo local, o professor.

Nas aldeias, de traçado labiríntico, com os cotovelos de algumas casas a roçar nas janelas de outras, o granito dominava a matriz das composições. A degradação da maior parte delas escondia no seu seio um espaço amplo sem divisões. De autênticos palheiros se tratava, com pequenos quinteiros onde deambulavam galinhas e suínos, quando aos roncos não vagueavam pelas ruas estreitas obstruídas e repletas de lixo a que ajudava o costume de despejar determinados dejectos fisiológicos materializados na célebre frase “água vai”, que por vezes a autarquia obrigava, com coimas, a limpar. Grassava uma economia de subsistência, isto é, de miséria, relativa, para quem vivia dos mimos que brotavam de pequenas parcelas de torrões, e completa, para aqueles que de seu tinham apenas os caminhos. De tal ordem era o lodaçal em que se encontravam as carteiras que chegavam a existir peditórios para a compra de caixões ou para adquirir alimentos relativos a uma alimentação básica e remédios.

Bens de primeira necessidade, hoje direitos que se alojam no subconsciente hodierno como garantidos e que fazem parte da própria realidade, apareceram já depois de implantada a República. A todos os condicionalismos já aludidos, cumpre notar também que a escassez de indústria era manifesta, talvez um dos maiores cancros do interior beirão que se mantém até à actualidade. A agricultura era a actividade dominante. Além desta, a pastorícia e as actividades artesanais e manufactureiras existiam um pouco por todas as vilas, suprindo as necessidades locais. Poucas eram as fábricas existentes no espaço correspondente ao actual concelho de Moimenta da Beira que integra a sub-região da Beira Douro. Destacam-se as fábricas do bicho-da-seda da Rua e fábrica da manteiga de Leomil.

Entre os estabelecimentos comerciais existentes ocupavam lugar de destaque as tradicionais tabernas, cuja existência remonta ao período medievo, as quais fechavam portas às oito da noite. Foi apenas muito tarde, com o advento da iluminação nocturna e com uma progressiva melhoria da segurança das populações que foi possível redescobrir a noite. Até então, a única possibilidade de actividade e divertimento nocturno eram os célebres serões da aldeia, típicos da Beira.

Aos domingos, além das obrigações religiosas que na sua maioria os fiéis cumpriam a preceito, havia espaço para alguns bailaricos matinais, portanto, diurnos, nas praças ou outeiros, ou nocturnos, aproveitando espaços habitacionais, actuando aí um tocador de concertina ou realejo que pela sinfonia auferia escassos escudos e uma porção de vinho. As mães sempre zelosas da honrradez das suas filhas, acompanhavam as raparigas lançando olhares de repressão com uma virilidade de estadulho. Aí roncava mil cantilenas a velha garfonola, por vezes comprada em sociedade e tocando discos de 78 rotações, do tempo da outra senhora.

Em termos políticos o concelho de Moimenta da Beira era efectivamente um concelho ainda subsidiário da reinvenção administrativa oitocentista que havia desmantelado outros concelhos para integrar este. O caso mais sensível, o de Leomil, continuava a ser gerido como o fora a partir de 1855, quer dizer, com o recurso à integração nos mais altos poleiros dos paços do concelho de figuras leomilenses. E se essa estratégia fora a responsável pelo repouso dos estadulhos visível num relativo amansar dos ânimos, conseguira também manter intactos os limites do anterior concelho leomilense que apenas transitaram para os da freguesia. Não orbitava o vórtice político, como se sabe, em torno de uma vasta plêiade de indivíduos. Desse reduzido conjunto, caciquista – impensável seria desmenti-lo - os leomilenses figuravam amiúde. Dominavam o panorama político local, por conseguinte, figuras monárquicas com um passado familiar ligado a pergaminhos de nobilitação. Existiam já, porém, na retranca, toda uma série de personalidades endinheiradas com uma matriz de pensamento distinto, contrário e oposto ao modelo político então vigente, não tivesse sido avassalador, por estas paragens, o liberalismo.

Em 1910 o concelho contava com 14335 habitantes (6591 homens e 7744 mulheres), dos quais apenas 1508 eram eleitores. Seria o primeiro presidente da Câmara, após a implantação da República, João de Almeida Galafura Carvalhais, residente no largo do Tabolado em casa apalaçada, local que já era há alguns anos o centro da vida cívica e política de Moimenta da Beira, aquele onde gravitava o exercício das actividades camarárias, económicas, administrativas, políticas e inclusive o exercício da justiça. Antes disso, já a Câmara Municipal funcionava no edifício onde está hoje alojada. Foi em 1858 que a nova Câmara eleita, presidida pelo Dr. António de Almeida Carvalhais Galafura, iniciou junto do Governador Civil o processo para a compra da casa de D. Claudina Carvalhais, com seu quintal, quintã e palhal, para o que obtém poderes logo no mês de Junho. Partia a nascente com a Praça do Tabolado, a Sul com a estrada de Toitam e a poente e Norte com campo pertencente ao mesmo imóvel. Foi avaliada em oitocentos reis a que se juntaram quatrocentos reis de restauro e compra de utensílios vários. Passou o edifício por várias transformações e há 100 anos atrás tinha o aspecto da imagem que apresento.

Publicado na última edição do Jornal Terras do Demo

1 comentário:

Alex disse...

Fantástico este artigo....nem sempre os leio, mas este li e achei muito bom Jaime!