quarta-feira, 18 de maio de 2011

«Arqueologia» - O culto da água


I. Fonte da Feira (construída em 1919).
II. Pormenor decorativo da Fonte da Pipa (século XVIII: conjectural): “a boca da água viva”.
Freguesia de Moimenta da Beira

Contento-me ao ver, ao fim de alguns anos, as duas fontes que ladeiam o edifício da Câmara Municipal de Moimenta da Beira (ambas edificadas por esta autarquia, respectivamente em 1919 e em 1920) brotarem novamente água. Sem dúvida, a prova de que, com pouco custo, os poderes locais conseguem recuperar e valorizar o seu património.
Pois, por vezes, basta apenas a sua limpeza, o arranjo do espaço envolvente, a substituição da(s) bica(s), a beneficiação das condutas de água, um ou outro melhoramento, para que se mantenham as suas características originais, reavendo a sua identidade e utilidade, e, ao mesmo tempo, combater a ideia (na minha opinião, errada!) de que as coisas antigas ficam melhor com um toque de modernismo. Na realidade, as coisas antigas apenas têm o seu verdadeiro valor patrimonial se as preservarmos como sempre foram, tanto quanto possível, em função do seu actual estado de conservação e do seu enquadramento.
Detendo uma enorme importância histórica, monumental e artística, interessa lembrar aqui que as fontes foram, durante muito tempo, nas nossas praças (largos) e jardins (havendo-as também de uso particular), não só o principal meio de abastecimento de água à população, como também tiveram um papel integrador da vida comunitária, enquanto local de convivência/proximidade. Aliás, nalguns casos, foram mesmo divinizadas, pelas propriedades curativas/terapêuticas das suas águas, daí as chamadas Fontes Santas ou Águas Santas.
Como se sabe, a crença nas virtudes da água é universal. Para a maioria das culturas, este recurso natural simboliza a origem da vida (o elemento criador de todas as coisas existentes), a fertilidade, a maternidade (a água fresca que brota do seio da terra), a pureza/purificação, a saúde e a imortalidade. 

Vejam-se os exemplos[1], na mitologia, de: Calipso, Neréiades, Posídon, Sereia, Tétis, Tritão (algumas das divindades aquáticas gregas), Neptuno (deus romano do mar) e de Sulis (deusa das águas termais e curativas na mitologia celta). Vejam-se os exemplos, no que respeita ao território português, de Tongoenabiago, divindade fluvial adorada na Fonte do Ídolo[2] (Rua do Raio, Braga) e de Nabia[3], divindade aquática venerada pelos Lusitanos, donde derivará a designação do rio Neiva (rio que nasce na serra de Oural, no Minho).
Mas mais, ainda hoje encontramos testemunhos do seu culto na maioria das religiões[4], espelhadas nas suas diversas manifestações (o exemplo do baptismo nas igrejas cristãs, que é praticado com água, simbolizando o nascimento de um novo ser), na santificação de lugares (na Índia, ainda existe a tradição de se banharem no Ganges, rio considerado sagrado), em peregrinações e romarias, como é o caso da Romaria à Senhora da Hora e da sua emblemática Fonte das Sete Bicas[5], uma das maiores romarias da região do Porto, pelo menos desde os inícios do século XIX até meados do século XX.
Publicado no Jornal Beirão (62.ª edição)



[1] Testemunhados por diversas epígrafes, monumentos (alguns rupestres), obras poéticas (epopeias…), etc.
[2] Santuário da época romana de Bracara Augusta.
[3] Donde derivará também a denominação do rio Navia, na Galiza.
[4] No Judaísmo e no Islamismo, é ministrado um banho de água purificada aos mortos, representando a passagem para a nova vida espiritual eterna.
[5] Fonte com propriedades casamenteiras.


Autor: José Carlos Santos

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