terça-feira, 25 de maio de 2010

«A História da Nossa Terra» - O foral do Souto, concelho pertencente ao Couto de Leomil

As origens do municipalismo na Península Ibérica são diversas e complexas. No processo evolutivo continuado que evidenciaram, manifestaram múltiplas fases, com distintas características entre si. Sobre a origem institucional dos municípios não há, entre os historiadores, unanimidade, figurando nas matrizes municipalistas ora origens latinas, ora bárbaras, ora visigóticas, mouriscas, e ainda outras. Certo é que as comunidades, mesmo as que existiam há mais de um milénio atrás, necessitaram de se agregar em núcleos e de estabelecer regras de conduta. Porém, verifica-se que num determinado território inscrito nos mesmos limites, coexistiam múltiplas tradições, diversas regras e distintos usos e costumes. O direito consuetudinário e costumeiro - o direito com base no costume - foi o aquele que avultou dessa necessidade de fixação jurídica, de dotação de lei aos espaços povoados.
No período de reconquista cristã da Península Ibérica aos mouros foram estabelecidas novas estruturas de poder. Um dos instrumentos que concorreu para a concepção do reino como um todo defendido e povoado foram os forais. Com uma certa dose de autonomia mas regradas hierarquicamente sob os padrões feudais, as várias franjas populacionais estavam subordinadas entre si por relações de vassalagem, isto é, de poder, económico, político, judicial, adminstrativo, etc... Um aldeão - servo da gleba - prestava vassalagem e estava dependente de um senhor feudal, nobre, por norma. Por seu turno, este, prestava vassalagem e estava sob a autoridade de outro senhor nobre, que ocupava a cúspide da pirâmide social, o Rei. O Rei era o senhor feudal, cujo senhorio, ou domínio, constituía um reino.
Os forais velhos, ou antigos, eram, por conseguinte, diplomas normativo-jurídicos concedidos pelo Rei, ou por outro senhor que detivesse plenos direitos sobre a localidade a que se destinava o foral, tal como um nobre, um cenóbio ou um antístite. Desses documentos divisavam-se vários objectivos, entre os quais estava a dotação de estatutos político-concelhios a determinado território, impondo as regras fiscais, judiciais, económicas, entre outras. Com certos laivos do Direito Romano e do Codex Visighorum, alguns dos forais não esqueceram os usos e costumes típicos da comunidade a que respeitavam. As liberdades e garantias que alguns concediam às populações visavam atrair o povoamento.
Na aurora do período moderno, os forais, diplomas multisseculares, alguns dos quais já adulterados, outros rotos e integralmente desactualizados, foram revistos. Integrava-se essa reforma numa concepção legislativa mais vasta, que esteve na base do surgimento de uma plêiade de códigos normativos, nomeadamente as Ordenações Manuelinas, o Regimentos dos Pesos, o Regimento dos Oficiais das Cidades, Vilas e Lugares..., entre outros. D. João II e D. Manuel foram os reformadores. Em apenas dois reinados conseguiram estabelecer as bases da administração local do reino que viria a vigorar cerca de três centenas de anos.
O Couto de Leomil, criado ainda antes da fundação da nacionalidade, foi parar às mãos dos Coutinhos, assim designados pelo senhorio que detinham, inicialmente pequenino, e depois transformado e aumentado, vindo a ser o maior do reino. Vários eram os concelhos que integravam este senhorio. Um deles era o concelho do Souto. Concelho desde tempos antigos teve foral velho que foi revisto e reformado no período moderno por D. Manuel.
Este foral está intitulado como adstrito ao Couto de Leomil porque D. Fernando, no século XIV, doou a povoação de Souto a Vasco Coutinho, pai de Gonçalo Vasques Coutinho e avô do ilustre Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço. O aludido nobre, senhor do Couto de Leomil, era titulado por Marialva, daí que o próprio foral do Souto faça referência à terra de Marialva. Segue-se, abaixo, a transcrição do foral que apresento na figura.
“Foral do Souto do Couto de Leomil por composição antiga. E assy havemos d'aver do concelho do Souto, segumdo a composiçam amtiga, estes dereitos per bem da qual composiçam e avemça há-de pagar cada morador do dito lugar hum alqueire de pan da medida d'agora: três quartas de cemteo e huma de trigo e em denheiro oyto reaaes. O qual dereito foy chamado antigamento paradas assy neste lugar como nos outros comarcaãos. E pagam mais por dia de Mayo, de colheita trezemtos reaaes repartidos per todos beens que há no dito lugar ora sejam moradores demtro no comcelho ora fora. E per este respeito pagam as ditas parada do pam o denheiro acima contheudo as pessoas de fora que hy têm beens pera o deverem de pagar, posto que hy nam vivam, sem embargo de nenhum privillégio que tenham, posto que clérigos sejam. E nam se paga hy portagens nem outro dereito real. E os montados e maninhos seram do comcelho. E o gado do vemto quamdo se perder será do senhorio amdando em pregam segundo a nossa ordenaçam com declaraçam etc. assy como em Marialva se conthém.”
Como se percebe, este foral incide sobretudo na reforma das obrigações fiscais dos moradores, assim como outras de natureza económica e judicial. Faz alusão ao senhorio que pertencia aos Coutinhos, senhores de Marialva a quem cabia a posse do gado do vento, isto é, os animais que andavam a monte, perdidos ou sem dono. Refere ainda os direitos que eram devidos ao rei assim como os relativos ao concelho, caso dos montados e maninhos que eram terrenos incultos, particulares, da Coroa e mesmo do município, cuja utilização originou desde sempre inúmeras contendas que chegaram até hoje através da polemológica questão dos baldios.
O Souto é hoje uma freguesia do concelho de Penedono, cujo castelo está também ligado à família dos Coutinhos, senhores de Leomil. Tem 15 km² de área e segundo os censos de 2001 comporta cerca de 400 habitantes. Da freguesia constam ainda os lugares da Trancosã, Mozinhos, Risca e pela anexa Arcas que conta com cerca 120 habitantes, distando 2 kms da sede de freguesia. De fundação antiga, a povoação de Souto está situada no cimo de um pequeno vale formado pelo Rio Torto, destacando-se a Sul a presença do Monte que em tempos foi designado de “Fonte de D. Clara”, fortaleza natural das comunidades que o escolheram para se fixarem. A presença de comunidades humanas nesse local está comprovada pela existência de vestígios que apontam para um castro erguido na Idade do Ferro.
Souto e Arcas têm um património que nos fala do seu passado, de onde se destaca a Torre do Relógio; a Capela do Divino Espírito Santo; a Capela de Santa Apolónia; a Fonte de Mergulho; a Cova da Moura; as alminhas e o Guardião do Monte Airoso. Por fim, uma fonte histórica de incontornável valor: o pelourinho, testemunho da autonomia do poder municipal, erguido na praça da vila, possivelmente logo após ter recebido o foral manuelino. O monumento é constituído por plataforma com soco de 4 degraus de planta quadrangular, coluna de fuste oitavado com cerca de 3 metros, despojado de qualquer elemento decorativo, e remate piramidal precedido de cornija de dupla moldura que contorna o capitel de secção quadrada, ostentando escudo com as armas de Portugal. Notam-se vestígios de ferros de sujeição. É um pelourinho do estilo pinha.
O estudo e publicação das mencionadas fontes históricas, de onde avultam os forais, é uma oportunidade única para reavivar alguns traços da memória e para reforçar a ligação com o passado, enriquecendo a identidade cultural das gerações presentes e futuras.

Autor: Jaime Ricardo Gouveia

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