quinta-feira, 13 de outubro de 2011

«História da Nossa Terra» - A Implantação da República vista por Ladislau Patrício, genro dos Sarmento Vasconcelos de Paradinha

Nagosa, Outubro de 1910. Anselmo Nogueira, boticário e caseiro, casado com D. Ermelinda, andavam emaranhados nos trabalhos da vindima. Vindo ali de Lamego um caixeiro de amostras, dera-lhes a notícia de que estalara a revolução na capital. Espalhara a novidade de que Lisboa era, a essa hora, um mar de sangue. A notícia, porém, era vaga e incerta, mas não deixava de ser sintomático que ali chegasse assim aquele lugar sertanejo e ignorado, veiculada por um labrego analfabeto. Desde o assassinato de D. Carlos, a última trave do edifício monárquico, que Anselmo, acompanhando o alvoroço em que desde então o país se precipitara, sentia um forte desânimo. O reino era chefiado, desde aí, nem por um rei nem por uma rainha senão por uma figurinha débil e epicena de maricas. Não obstante preocupado reagiu Anselmo “nós cá não temos nada com isso, lá é com eles, acima de tudo o que eu sou é patriota, República ou Monarquia tanto se me dá, o que é preciso é haver quem nos governe”. Proclamada a República a novidade foi oficializada em Nagosa. Sabia-se que em Moimenta os republicanos tinham já içado na casa da Câmara o pavilhão revolucionário. Ia um delírio na população que reagia ora timidamente ora de forma mais afoita. O brasileiro de Cabaços, sabia-se, deitara mesmo meia dúzia de foguetes que se avistavam perfeitamente de Nagosa. De ânimo fácil de conformar, Anselmo já trauteava, tempos depois, a Portuguesa. Porém, o primeiro desgosto sério que teve com a República, foi a Lei da Separação. Apesar de lhe dizerem que o espírito da lei não era perseguir ninguém mas apenas a necessidade de o Estado se abster de apadrinhar esta ou aquela religião, ele mantinha que o país era católico e que as leis republicanas era um atentado contra a religião de cada um. A mudança das cores da bandeira reprovava-a também, vindo-lhe lágrimas aos olhos quando viu hasteada na Câmara o hediondo trapo republicano. A mudança de regime como ele a entendia, deveria cingir-se a abolir a realeza como causa maior dos cataclismos que assoberbavam o país. O resto era pó, ou melhor, ódio, vingança, perseguição, fanatismo. Prisões, demissões, desacordos, antipatias, sucediam-se. As redacções dos jornais monárquicos eram assaltadas por magotes de homens armados e coléricos que tudo destruíam. Anselmo assistia a tudo indignado. Cale-se, vociferava ele a Teotónio Mendes, republicano hereditário. A República tem de ser tolerante se quiser viver! A opinião pública está com a Igreja, acrescentava ele com o suor a porejar na fronte. Retomava: podem-me prender, se quiserem, que eu direi sempre a verdade. Admite-se lá que se tire assim o pão a tanta gente, que se lance na miséria tanto português, tanto padre com mulher e filhos… perdão (emendava), com família numerosa. Tudo mudara, na verdade e até mesmo o movimento farmacológico no concelho diminuíra, não havia doentes, pois tudo e todos estavam ocupados em acções de insubmissão. Que Anselmo abraçava a causa de Paiva Couceiro, vigoroso comandante da reacção monárquica a partir da Galiza, sabia-se não apenas no seu universo de amigos mas também fora de portas no reduto monárquico. Talvez por isso Anselmo principiou a usar de mais perspicácia tornando-se num farsante, aderindo oficialmente à causa republicana e, tempos depois, quando da organização dos partidos, filiou-se nos democráticos. Um dia um dos ministros foi a Viseu. Anselmo, o administrador do concelho, o jornalista Meneses e outros participaram do evento. Brindando à condenação do clero falou de Viriato e terminou com um viva à República que atroou o vasto recinto do teatro onde decorria o banquete. Sensibilizado, o ministro ergueu-se, agradeceu, discursou pausadamente e, no fim, empunhou a taça e pediu que todos bebessem à saúde de Anselmo Nogueira, “figura prestimosa da República, homem de bem às direitas, livre-pensador e companheiro fiel dos tempos de propaganda”. Anselmo, carregado, chorou. E Teotónio, batendo com a mão no ombro do administrador de Moimenta, segredou-lhe: “Lá intrujou o ministro, o patife! Companheiro fiel dos tempos da propaganda, ouviste? Que desaforo! O administrador comentou: e livre pensador, filho! Parece que o estou ainda a ver de lanterna e de opa na procissão do Senhor dos Passos! O que é o mundo!...” Teotónio pôs-se a considerar palitando os dentes e não resistiu a indagar: “Então e nós?”, respondeu o administrador: “Nós? Nós não sairemos nunca da cepa torta, meu velho… Este Anselmo, este farmacêutico, que ali vês recostado numa cadeira, é o modelo do político português. Maioral no tempo da monarquia, maioral se vai tornando dentro da República. Era de esperar. Pois se os monárquicos é que prepararam isto com os seus erros, se eles é que deitaram a monarquia por terra, não achas justo que quem plantou a vinha pense também agora em comer os cachos?...”

Este é, a breve trecho, o conto da autoria de Ladislau Patrício, escrito em 1912, e publicado em Coimbra em 1914 num livro que intitulou Aquela Família. Tipos, caricaturas e episódios provincianos, numa altura em que a República estava ainda quente e a monarquia e os seus obreiros eram de fresca memória. Trata-se, no meu entender, de uma interessante crónica sobre o que foi a implantação da República em Moimenta da Beira. Ainda que ficcionária, percebem-se certos laivos de realismo. O facto de o narrador ser participante, sob a personagem de Teotónio, que relata a história, reforça a convicção de que as páginas de Ladislau se entremeiam de realismo. De resto, espremidas as páginas, avultam personagens e factos profundamente consonantes com a realidade epocal.

Ladislau, clínico natural da Guarda, casou no dia 8 de Abril de 1911, em Paradinha, com D. Maria José Sarmento de Vasconcelos. Era a noiva filha de Artur Sarmento de Vasconcelos, pertencente a uma distinta família monárquica. O consórcio foi noticiado pelo Jornal A Folha do Norte, pelo que republicana era a família já nesta altura. Do nubente notava o artigo: “[…] é um simpathico rapaz, muito inteligente e cheio daquella bondade e franqueza que caracterisa o tipo beirão. Novo ainda, é já um distincto medico e para se aquilatar da generosidade da sua alma, basta dizer-se que é poeta. Escreveu o “Azul Celeste”, um mimoso livro cheio de lirismo, onde revela largos voos de imaginação e um fino gosto de paisagista delicado”.

Ladislau Patrício é mais um entre tantos outros autores que prosaram vivas páginas de interessante ficção entremeadas de realismo histórico, incidentes sobre o concelho de Moimenta da Beira que convém recuperar e rememorar. O seu livro, raríssimo, merecia, como outros, reimpressão. A cultura escrita moimentense vai muito além dos autores consagrados.

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