terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Entre pelourinho e cruzeiro: o património de Segões

Segões é uma das vinte freguesias que compõem o concelho de Moimenta da Beira. Talvez porque se trata de uma das que mais dista da sede concelhia, não se lhe tem dispensado a atenção que merece, sobretudo no que concerne ao seu conjunto patrimonial. Os 2,20 km2 de área onde está implantada apresentam-na como uma freguesia pequena, com uma massa humana a ultrapassar uma centena de indivíduos, mas indubitavelmente rica sob o ponto de vista da história, da arte, da cultura e da sociabilidade. A sua posição de transição entre os bispados de Viseu, Lamego e Guarda foi reconfigurada ao longo da História. É possível que em tempos mais remotos tenha pertencido a outros concelhos e vários foram também os municípios que viu soçobrar às mãos do tempo, das reformas e das conjunturas. Resistiu às vicissitudes de percurso, mantendo-se implantada nas margens do leito do Rio Paiva. Desde tempos imemoriais que estas águas truvas de sais procurados para doenças da pele, deslizam pelas suas planícies com uma calma absorta que liberta as substâncias necessárias à sua fertilização, constituindo o caudal necessário para pôr em marcha essas locomotivas ancestrais de transformação do cereal.


O património cultural, móvel ou imóvel, é múltiplo e compreende todas as edificações ou realizações humanas do passado. Não significa, pois, que solares e outros imóveis e até bens móveis que testemunhem a existência de modos de vida refinada próprias dos estratos mais elevados da sociedade, devam ofuscar a existência e importância de outro tipo de património relativo aos sectores mais baixos da sociedade. O património rural, religioso e civil tem um valor próprio que importa considerar. Segões é uma aldeia rica em património rural. Além dos moinhos de água, do fraguedo das eiras em granito puro da Beira, possui um cruzeiro notável, diversas alminhas, um templo católico de nota histórica e todo um casario de feição arcaica e rural que ombreia com um traçado não menos rústico numa doce emanação de passado.

Diz-se que o povoado de Segões remonta
 ao século IX ou X, advindo o seu nome do germânico Saggo, o fundador que terá erecto a vila Segonnis. Na falta de provas com substância científica dever-se-á sublinhar esta conjectura como mera hipótese. Porém, a antiguidade de outros povoados limítrofes, bem como a multiplicidade de vias românicas nas proximidades territoriais, robustece a hipótese.

Não abundam os documentos acerca desta aldeia moimentense. Existem alguns fragmentos dispersos já inventariados e certamente muitos outros ainda por identificar. Sabe-se, a título de exemplo, que na Igreja de Segões estiveram agentes do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em 22 de Dezembro de 1678. Aí interrogaram alguns moradores dessa povoação acerca de João de Almeida, pároco de Alhais, que aí paroquiara e aí desencaminhara algumas paroquianas durante o acto da confissão sacramental para a prática de acções pecaminosas.

Em 1768 Segões tinha 50 fogos, ou seja, cerca de 200 pessoas. Em 1880 tinha já 65 fogos e uma população de cerca de 250 habitantes. Desde tempos imemoriais que o orago da paróquia é S. Martinho, bispo. Pertenceu durante praticamente toda a época moderna ao concelho de Caria-Rua. Pinho Leal sublinhava-o em 1768. Desanexados estes dois concelhos, Segões permaneceu ligado à Rua. Era o reitor da Rua que apresentava o cura nessa paróquia, o qual tinha 40 mil réis de côngrua aos quais acresciam 30 mil réis de benesses. Sobre a terra propriamente dita, Pinho Leal advogava ser fria e abundante de cereal e caça.

De toda a riqueza patrimonial da aludida povoação o vetusto cruzeiro é o mais emblemático e enigmático. Olhos acríticos dão-no como erecto ali desde sempre. Tal não é verdade, porém. Fotos antigas, com mais de um século, uma das quais aqui publico (agradeço à arquitecta Bruna Santos a cedência dessa foto existente na Junta de Freguesia), provam que este cruzeiro foi deslocalizado. Certamente por ter sido erecto num local inadequado em termos arquitectónicos foi colocado ao centro de um largo que lhe ficava de fronte. A foto mais antiga que dele se conhece, com problemas de visibilidade no remate, parece fazer crer que se trata de um pelourinho. Assim pensei, logo que a vi. Porém, após ter tratado a imagem com as ferramentas técnicas mais adequadas concluí que o remate do conjunto é feito em cruz, portanto o monumento visível na imagem mais antiga é um cruzeiro. Segões nunca foi concelho no período moderno, pelo que não poderia ter pelourinho.

No entanto, continuei intrigado e resolvi continuar a estudar o monumento. Espanta-me todo o conjunto. Praticamente todos os pormenores são incomuns num cruzeiro de uma povoação rural. Diga-se, desde logo, que este cruzeiro tem todos os elementos seccionais de um pelourinho, o que adensa o espanto. Possui a plataforma, composta por dois degraus quadrangulares. Tem, depois, uma base idêntica à antiga mas menos pronunciada. Segue-se um fuste (coluna) quadrangular que termina em forma oval mais estreita, que não corresponde ao original. O fuste que se vê na fotografia antiga é circular e elevava-se a uma altura superior. Também o remate actual é diferente do antigo, além de se perceber, pela foto, que a superfície que assenta na coluna é mais delgada. Por fim, a cruz. Não se percebe se é a antiga ou não. Sabe-se, apenas, que a cor do granito não é igual à do fuste e da coluna.

Por tudo o que se acaba de dizer conclui-se que se trata de uma completa remodelação do antigo cruzeiro com base no aproveitamento de outros conjuntos já existentes em granito e, portanto, não gizados de raiz para dar origem ao cruzeiro. Poderão ter sido adquiridos aos concelhos que destruíram os seus pelourinhos e quiseram dar destino às pedras. Assim aconteceu com o pelourinho de Moimenta da Beira, cujas pedras foram vendidas. Destino igual teve o pelourinho de Nagosa. Não se sabe o que aconteceu com o pelourinho de Peravelha ou o tão propalado pelourinho de Caria (caso tenha existido um além do da Rua). Terão algumas das suas pedras sido vendidas para Segões? É uma mera hipótese. Contudo, no vizinho concelho de Barrelas, houve pelourinhos que também foram demolidos.

A tudo o que vem a ser dito importa ainda desenrolar outra ideia. O conjunto antigo do cruzeiro, visível na imagem mais antiga, continua-me a suscitar dúvidas. Reaproveitamento de um pelourinho ou não, quer na forma antiga, quer na forma recente – o que me parece hipótese a considerar – a verdade é que se trata de um dos ex-líbris desta terra.

2 comentários:

quarenta disse...

Do melhor que já li em toda a minha vida.

Jaime Gouveia disse...

Obrigado!